O espírito de uma cidade, quando se perde do corpo construído, vira o fantasma que lhe assombra. O que se ignora está fadado a vagar entre o amontoado de camadas espaciais e simbólicas costuradas no tempo, assombrando o presente e inspirando constantes batalhas por sua ocupação e seus significados. Para transcender os traumas do animus urbano, é preciso decodificar o que não é visível: resgatar o que foi vivido, discernir entre o que foi preservado e o que se destruiu, descobrir como e porquê essas escolhas se relacionam. Sem essa memória tátil, cidades se tornam desertos: são apenas formas monumentais de areia, vazias de propósito, fadadas a ruir e se refazer no sopro do vento, em qualquer direção.

Historicamente, políticas de encobrimento dos fatos, seus nexos causais e suas consequências atuam como força centrípeta, criando um redemoinho das mesmas essências em outras roupagens, circulando sentidos históricos fugazes, mas estruturalmente inalterados. A faceta prática desse projeto público-privado são reformas superficiais, ilusões caríssimas para ocultar os mecanismos estáticos que produzem, articulam e sustentam as relações verticais de poder. Para mascarar deliberadamente as continuidades sustentadas sob as novas edificações, a faceta jurídica esconde o diabo nos detalhes, fincando brechas, jogadas e acordos que anulam a efetividade de processos democráticos e de conflitos sociais que tentam estabelecer bases comunitárias mais justas. Sentenciam cidades e sociedades à obscuridade do calabouço, condenadas a reviver os erros e as atrocidades de uma pretensa história única. E lá ficam: aprisionadas na úmida e escura caverna do esquecimento, onde se tornam tolerantes do inaceitável. 

No vídeo-ensaio “Calabouço e os arrasamentos quando morro”, os artistas Diego Crux e Gian Spina se debruçam sobre o processo brutal e contraditório que tenta apagar as memórias públicas da cidade do Rio de Janeiro em prol da manutenção do estado das coisas na antiga capital do Brasil e cartão-postal nacional. A experiência não conduz o interlocutor em uma jornada literal nem linear, nem pretende revelar todas as verdades sepultadas por séculos de soterramento. Para abordar essa “marcha do progresso” homogeneizante, os artistas justapõem fragmentos inscritos em raras pistas preservadas, lançando mão de uma gama ampla de recursos vindos de sua pesquisa arquivística, bibliográfica, literária, iconográfica, fotográfica e etimológica, em composições e sobreposições sonoras, visuais e sensoriais.  

O trabalho toma como ponto de partida um trecho de Memórias Póstumas de Brás Cubas (1880), que, com a pungência da literatura realista machadiana, nos põe diante de um retrato acertado das mentalidades, egos, práticas e interesses da classe dirigente do país. Referindo-se ao cunhado do narrador, o “verdadeiro” Cotrim, expõe as distorções das noções de virtude (pagadores de impostos) e os meandros da lavagem da alma pela terceirização da crueldade, sem que suas mãos se sujem de sangue, nem a culpa se registre em cartório. 

Nesta contra-narrativa, o que se vê é o confronto do mito alegórico da Cidade Maravilhosa em moldes europeus com o desmonte dos morros e o desenraizamento de vidas; o aterramento de lagoas, rios, orlas e de memórias; e a centralidade do uso da mão de obra escrava e de recursos financeiros provenientes do açoite público no Calabouço para bancar obras de embelezamento e gentrificação urbana no Centro. Exemplo exímio desse sistema foi a construção do Passeio Público de Mestre Valentim em 1779 e suas infinitas repaginações, assim como tantas outras capitaneadas por discursos vazios ligados às pautas de saneamentos e de modernização messiânica da cidade. O trabalho também joga luz sobre os processos de deslocamento e repetição que plastifica e arranca as raízes dessas histórias — no qual o Calabouço é tanto metáfora quanto peça literal das relações intrínsecas entre a violência de Estado, o acúmulo desigual de capital e a impunidade seletiva de alguns particulares (enquanto seus pares seguem práticas semelhantes sem maiores constrangimentos).

O Calabouço, essa instituição-conceito perverso, passou de masmorra desumana no pé do Morro do Castelo à referência geográfica cada vez mais neutra (“Sem contar com Calabouço, Flamengo, Botafogo, Urca, Praia Vermelha!”, cantava Tim Maia), quase dando nome ao Aeroporto Santos Dumont. Acabou associado ao malfadado restaurante popular onde a ditadura militar enfrentou resistência estudantil e cometeu seu primeiro assassinato público, tirando a vida de Edson Luís de Lima Souto em 28 março de 1968. No turbilhão dessa espiral histórica, algo permaneceu constante: a virulência que impregna e exala por debaixo da cidade, asfixiando o presente, envenenando qualquer possibilidade de futuro. É por meio do resgate da memória, portanto, que se pode deslocar o curso da história: puxando fios que desatam-se compreensões, desenhando com uma clareza aliviante o que já sabemos. É um processo restaurativo, transformador e fulminante que ativa — e aviva — o agora como único espaço-tempo possível para ressignificar o que passou e, assim, germinar as latências e desejos do por vir.

Edição de som:
Pedro Santiago
Agradecimentos: 
Avessa Garcia
Fabricia Ramos
Flora Thomson-DeVeaux
Germano Dushá
Paula Borghi
Pedro Santiago
Texto: 
Fabricia Ramos

Calabouço e os arrasamentos quando morro

Calabouço e os arrasamentos quando morro

Calabouço e os arrasamentos quando morro

07.01.19 /Ensaio
Memória e MovimentoHélio Menezes

24.05.20 /Arte
Arquivo ComplementarMarcelo Mudou

26.11.18 /Ensaio
Sou tudo aquilo que esqueciRafael RG

05.10.18 /Ensaio
Uma cidade agoraGermano Dushá

20.12.18 /Jornalismo
Adriana de Aruanda: senhora, amiga e poetaManuela Rached Pereira

30.12.18 /Arte
Unhas rasgarão cidadesAna Matheus Abbade

18.07.18 /Ensaio
Cidade ConflitoGuilherme Wisnik

12.08.19 /Arte
Entre-foraMaria Noujaim

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